quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Pare, pense e mude

Publicado no Jornal "A Capital" a 6 Março 2005

(…) as ditaduras da imagem, dos estímulos sensoriais imediatos e do consumismo estão a criar uma sociedade portuguesa com capacidades cada vez mais reduzidas - à semelhança, aliás, do que acontece nas suas congéneres do mundo dito ocidental (…)

in A Capital, “O que é Portugal?”, José Pacheco Pereira e Eduardo Lourenço.

PARE. Nunca tive vídeogravador e consegui até agora resistir aos multicanais da televisão por cabo ou satélite. Mas este Natal o cenário mudou: entrou cá em casa um leitor de DVD. Menos perigoso que a TV, porque só passa o que escolhemos é, ainda assim, dominador.
A imagem em movimento é uma tentação! E, de alguma forma, perigosa.

Ao que parece, o excesso de estímulos sensoriais conduz a uma crescente dificuldade de concentração, transformando-nos em seres passivos e particularmente vulneráveis ao consumo. É como se invadissem os espaços vazios da nossa consciência, eliminando a possibilidade de aparecerem novas ideias ou de armazenarmos de forma ordenada as memórias.

Confesso ter alguma inveja daqueles raros seres que não tendo televisão em casa
são capazes de se sentar duas, três horas em frente a um livro, deixando-se embrenhar pelo enredo, sem se sentirem tentados pelo frenético zapping, ou pela necessidade de ruído, visual ou do outro. Rodeia-os um ambiente de tranquilidade e parecem ser capazes de produzir mais ideias, absorver mais conhecimentos e apreciar coisas que já escapam aos demais.

O mundo mudou.
Os serões à conversa, as tardes de férias com faz-de-conta intermináveis, um fim de semana sem playstation, correspondem a cenários de miragem para a geração que se seguiu à minha. Não lhes causam qualquer entusiasmo; provavelmente ilustram mesmo o que têm por tédio. São coisas que dependem da iniciativa e sobretudo leeeentas.
E nós vivemos numa sociedade que encolheu o tempo, à força de choques tecnológicos.
Tudo se deve passar depressa, tudo se exige com pressa. Muito depressa mesmo.

Será que temos que aceitar este cenário; será tudo isto incontornável, irremediável e inultrapassável?
Quando penso num programa de identidade corporativa, numa exposição sobre o centenário de uma empresa, num manual escolar ou ainda num instrumento cirúrgico pergunto “como se podem desenhar sem investigação, reflexão, distanciamento, amadurecimento? Como é que se podem criar depressa?”
É que não podem…

PENSE. Depois há mais.
Nem tudo é “necessário”, nem tudo se pode encaixar na categoria de “essencial”.
Há carradas de imprescindíveis que atafulham as lojas e os nossos quotidianos.
Uma simples arrumação de casa faz-nos descobrir um mar de inutilidades e a perspectiva de termos que nos desfazer delas é uma tarefa quase impossível.

Proponho-lhe um exercício de despojamento: seleccione 15 objectos “essenciais” a uma vida nova. Verá que na sua escolha hesitará entre o peso da memória e a modernidade, fará a reflexão sobre o útil e o supérfluo, medirá afectos, ponderará necessidades…
“Algures em África” é um filme (sim, há em DVD!) sobre uma família judia que na Segunda Guerra Mundial segue para África para fugir a um destino que parecia inevitável. O marido, que viajou primeiro, recomendou à mulher que trouxesse apenas coisas imprescindíveis: “um frigorífico, material de primeiros socorros, redes de mosquiteiro”. Apesar de não haver qualquer tipo de vida social, ela não resistiu a trazer também um belo e caríssimo vestido de noite (fundamental para ela, do ponto de vista emocional, porque representava a memória de um mundo perdido e a esperança num mundo a recuperar).

O essencial não é igual para todos, nem em todos os momentos. Há sempre um contexto condicionante, mas devem existir critérios de selecção.
Ora o design debate-se diariamente com este tipo de questões: o que é que é essencial num projecto? Qual é o verdadeiro problema? De que forma se pode intervir para produzir “apenas” a resposta? E que ela seja a mais eficaz?
É preciso reflectir e não deixar tudo nas mãos das evidências ou de um qualquer manual de instruções…


MUDE. A necessidade de uma mudança de atitude face ao consumo passa por um exercício de vontade e pela responsabilização dos diferentes actores da produção: encomendadador, consumidor e designer.
Levantemos então apenas a ponta do véu…

Quando alguém encomenda um trabalho de design é bom que pense que vai à procura de respostas e não de alguém que passe a limpo uma ideia. O resultado é tanto melhor quanto maior for o clima de confiança, liberdade e co-responsabilização.

Quando alguém reduz o consumo ao essencial, quando opta pelo não desperdício, ou pelo que é feito com consideração pelo resto do Mundo (na utilização racional de recursos, na utilização responsável da mão de obra), essa sua escolha é, certamente, o elemento que faz a diferença. O gesto que materializa a ideia de responsabilização.

E quanto ao designer? O que se lhe exige?
Que seja fiel a uma prática profissional que recusa abordagens superficiais ou imediatistas. Que pare, pense e seja factor de mudança!

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