quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Alerta LX

Publicado no Jornal "A Capital" a 10 Julho 2005

Lisboa é uma cidade bonita!
Ou melhor, tem tudo para ser bonita: um rio e o mar que anda por perto; mais de meia dúzia de colinas que animam a paisagem de casario e deixam lugar aos miradouros; uma intrincada teia de ruas com interessantes exemplares de arquitectura e alguns belos mas despovoados jardins.
A maior parte de nós nasceu e conhece, revê-se, num cenário de cidade.
Sabe-lhe os cantos, os atalhos, reconhece as zonas, as fronteiras. Mas, tal como acontece com as pessoas, as rugas das cidades que envelhecem connosco tornam-se invisíveis. Habituamo-nos às pequenas diferenças que vão surgindo e alterando a sua face.

A imagem das cidades advém fundamentalmente do modelo urbanístico (organização do espaço), das intervenções arquitectónicas (com estilos de épocas diferentes, monumentos e edifícios singulares) e da caracterização do espaço público (passeios, mobiliário urbano, sinalização).
E, claro, depende das pessoas. Do que elas fazem e permitem fazer.
Cidadãos e governantes. Os primeiros quando preferem o interesse próprio imediato sobre o do conjunto e os segundos quando se preocupam apenas com o curto prazo e show-off.
Se o domínio do automóvel, que arrebatou espaço às ruas e passeios, ou a desertificação de habitantes proporcional à invasão de “laborantes” levaram a que a imagem de Lisboa se degradasse, a ausência de normas ou senso na sua aplicação e fiscalização fazem o que faltava.

As intervenções de carácter urbanístico (relativas ao desenho e estrutura geral da cidade) são escassas e difíceis de levar a cabo. Surgem por vezes em virtude de catástrofes – como aconteceu após o terramoto pelas mãos do Marquês de Pombal e a equipa da Casa do Risco das Reais Obras Públicas de Lisboa –, para evidenciarem o poder político – caso do Estado Novo -, ou pelo empenho de governantes – como sucedeu, num certo sentido, com a Expo98.

Já o controlo sobre a arquitectura parece ser cada vez mais difícil: à degradação dos edifícios por anos de abandono, poluição e adendas (marquises, toldos, fios, graffitis e publicidade) somam-se a heterogeneidade e fragmentação das novas construções, cujos bons exemplos se perdem no conjunto desordenado.

Provavelmente, só o espaço público nos permite criar uma identidade própria e um espírito de lugar.
Para alterar a imagem de falta de unidade e coerência que assola Lisboa - e que não a promove nem dignifica - temos de atentar no que pode contribuir para criar essa identidade que lhe escapa, e recuperar os detalhes que a valorizam e que, em tantas situações, se estão a perder.

Na década de 90, a cidade inglesa de Bristol (que tinha atingido um dos períodos de maior desenvolvimento na sua história) reconheceu a necessidade urgente de estabelecer um programa de identidade que ajudasse simultaneamente a criar alguma ordem na sinalização e informação a prestar a visitantes e residentes.

Por iniciativa do “City Council” um grupo de peritos de diversas áreas (urbanismo, geografia social, psicologia ambiental, design de comunicação, entre outros), envolvendo diversos departamentos da cidade, desenhou um plano de intervenção sempre centrado no utilizador e que se pretendia aberto, isto é, actualizável, reprogramável, adicionável. (http://www.bristollegiblecity.info/).

A intervenção, como sempre acontece nestes casos, tem muito de invisível a suportar o que depois se materializa. Fundamentalmente foi infraestruturado um sistema de localização, orientação e informação. Que é obra!
As transformações passaram pela criação de um tipo de letra específico utilizado em todos os suportes de informação; de um conjunto de pictogramas facilmente reconhecíveis e uma paleta de cores com o azul de Bristol (presente em edifícios e pontes, na presença do mar e na construção em aço); de painéis de informação, sinais direccionais e algum mobiliário urbano.
Nada de logotipos e verniz. Uma intervenção estruturante e transversal. Que a todos envolvia e pedia contributos e participação.
A reboque deste plano vieram as transformações sobre o trânsito, a racionalização de percursos pedestres, a recuperação de edifícios e monumentos emblemáticos…
É um projecto ambicioso, mas de grande retorno!

Voltando a Lisboa…num retrato breve da actual situação o que encontramos?
Ruas com linhas de eléctrico desactivadas que permanecem aos pedaços no alcatrão; buracos ou remendos que o transformam em verdadeira manta de retalhos ou mostruário de materiais; mau estado dos passeios (é difícil encontrar um exemplo de calçada portuguesa que não tenha pedras soltas, pilaretes tortos, ervas daninhas, lixo ou restos de areia de obras “terminadas”); sinalização tanto excessiva quanto inadequada. Publicidade decidamente excessiva (agora até os retratos dos candidatos ocupam abusadoramente muitos dos passeios em placards de aspecto precário). Informação pouca e colocada sem critérios muito evidentes. Mobiliário urbano que tem de tudo: em variedade e estado de conservação (pelo menos 60! variedades de candeeiros de iluminação pública – algumas lado a lado - , uma dúzia de tipos de pilaretes anti-estacionamento, muitos modelos de bancos de jardim e vários géneros de paragem de autocarro).

Será que os responsáveis não dão pela falta de uma imagem coordenada na cidade, importante para quem a visita ou nela vive, e com ela se quer identificar?
Porque se sente esta falta de cuidados e coerência no espaço público?
O Regulamento Municipal sobre a Gestão do Espaço Público contém apenas algumas normas básicas sobre a colocação de quiosques e esplanadas. Nada diz sobre os critérios de aquisição ou criação, colocação e manutenção de mobiliário urbano; muito menos sobre uma ideia mais alargada de identidade ou informação no espaço público.
Os “olheiros” - funcionários do programa Lx Alerta que circulam pela cidade em Smarts para verificar se existem problemas que necessitem de intervenção da Câmara - ou o fazem de olhos fechados, ou têm instruções para não procurar.
Planos sobre a coordenação da imagem da cidade? Desconhecemos.

Estamos em ano de eleições autárquicas.
É altura de conhecer o que penam os candidatos sobre a Gestão do Espaço Público e da imagem da cidade.
Venham os planos…

E nem uma palavra

Publicado no jornal "A Capital" em 2005

Se calhar só a mim é que parece óbvio que o discurso político e económico devia estar, nos dias que correm, inundado da palavra “design”.


Dizem-nos, repetem-nos e sentimos que a nossa economia vai mal.
Portugal tem um problema de competitividade, visível na incapacidade de nos distinguirmos dos demais. Já não o conseguimos fazer pela mão-de-obra barata, porque outros com vidas e economias mais ameaçadas tomaram-nos a dianteira. De leste ou mais a sul chega quem não hesita em trocar a sua força por um punhado de moedas. Os nossos trabalhadores, que já conheceram esses tempos, mas provaram outras regalias, não querem – e justamente – perdê-las.
É então que se segue, no discurso generalizado, a palavra mágica: mais-valia; é preciso criar valor acrescentado aos produtos que produzimos. Não nos limitarmos a reproduzir, mas antes criar.
Por esta altura já se ouve em todas as bocas falar da “investigação e desenvolvimento”, das “novas tecnologias” ou “inovação”.
E nem uma palavra sobre “design”!

Uma empresa de produção de alimentos ultra-congelados decidiu apostar no relançamento da marca própria: Cozinha Pronta. Dentro da facturação total da empresa, essa marca ocupava 15% nas vendas para o mercado nacional.
Os estudos de mercado, que envolveram provas de degustação, não levantavam problemas quanto à qualidade do produto propriamente dito, mas sobre a imagem do produto, que se apresentava antiquada e de aspecto artificial. A administração decidiu investir na renovação da imagem da empresa e da marca e também na opção por menus tipicamente portugueses e 100% naturais. O processo envolveu investigação sobre o mercado nacional e estrangeiro, estudos de opinião com um painel de consumidores sobre diferentes hipóteses, tudo feito com custos controlados, mas sem descurar a qualidade de todos os pormenores (testes das receitas por um mestre cozinheiro, fotografia em estúdio, afinação de provas de cor, etc.).
O resultado foi compensador: com a nova imagem, a marca duplicou a facturação no mercado nacional e entrou pela primeira vez nos mercados do Canadá, Angola, Luxemburgo, Suiça, Holanda, Irlanda, Inglaterra, África do Sul, Bélgica, Espanha.
No espaço de um ano!

A inovação, que se pode referir à renovação de alguma coisa, como foi referido no exemplo anterior, também pode representar algo de integralmente novo.
O design tem muitas vezes uma intervenção muito mais abrangente, preocupada em antecipar cenários, em procurar além das evidências, em suma, intimamente ligada ao território da inovação. De algum modo, a metodologia que utiliza, a forma como funciona transversalmente a uma série de disciplinas, incorporando-as ou com elas construindo novas soluções, dá-lhe uma forte possibilidade de contribuir positivamente na resolução de problemas.

Em Novembro de 1993, Roterdão foi palco de um evento memorável – O2 Event -organizado por uma equipa de designers, que juntou 118 pessoas de 16 nacionalidades e formação diferentes para discutirem o futuro.
“A experiência diz-nos que o design não se pode limitar à criação de produtos, se queremos construir uma sociedade sustentável”, podemos ler no site (http://www.o2.org).
Este encontro de reflexão partia da ideia de que o mundo está a sofrer transformações brutais a nível social e económico (das quais a globalização é a mais evidente); transformações essas que conduzem a uma exploração suicidária do planeta.
Era pois importante criar uma visão de uma sociedade sustentável.

Retirei do relatório de apenas um dos workshops, dedicado ao debate sobre pequenas companhias, um exemplo da liberdade de abordagem e do papel da criatividade posta ao serviço da renovação de mentalidades. “Definir objectivos inacreditáveis, como o de zero energia, que se podia manifestar num seleccionador inteligente de locais de conferências. Quando se organizasse uma conferência, o local seria seleccionado apenas depois de fecharem as inscrições e basear-se-ia no local de residência dos participantes, tendendo a diminuir os custos de deslocação (claro que foi logo sugerido fazer uma data de amigos no Havai e pedir-lhes para se registarem…”).

Talvez estejamos no momento certo de conduzir um evento semelhante com a pergunta “o que fazer com Portugal?
Podiamos centrar-nos particularmente na tentativa de ultrapassar o défice de estratégia, notório na ausência de um sentimento de desígnio nacional, e sensível em quase todos os sectores da vida económica, política e social.
Um caso típico de falta de estratégia foi relatado no dia Mundial da Criança por Luís Villas Boas, presidente da Comissão de Acompanhamento da Execução da Lei da Adopção. Referiu que, em Portugal, um menor em risco pode ser alvo de acompanhamento de diversas instituições, mas que estas não trabalham de forma coordenada no sentido de garantir o melhor apoio à criança. O que pode significar esforços duplicados, meios desperdiçados, tempo perdido…

Escolhemos como nossa melhor qualidade o improviso e agora sofremos as consequências. Avançamos erraticamente, por atalhos, à boleia de ventos e marés, e acabamos no Brasil quando queríamos chegar à Índia. Não faz mal, foi óptimo!
Conseguimos fazer (mesmo à justa e contra todas as expectativas) os estádios para o campeonato europeu de futebol (vêem que conseguimos!) mas agora estão a mais, na contabilidade dos clubes e na vida desportiva.
Recebemos milhares de contos em verbas para a formação profissional, mas temos as piores qualificações dos trabalhadores na Europa!

Para um designer, a definição de uma estratégia é ponto fundamental e estruturante do seu trabalho. Não se avança sem um plano. Estabelecem-se objectivos, identificam-se necessidades, públicos a atingir, meios a utilizar. Estudam-se e investigam-se as possibilidades; inventam-se, criam-se alternativas; discutem-se, comparam-se, avaliam-se soluções.
Esse processo nem sempre é pacífico, já que pode pôr em causa práticas enraizadas ou exigir mudanças não antecipadas. Mas quando o que está em causa são resultados credíveis e não actos de cosmética é preciso coragem para assumir determinadas decisões. Quando age assim, quando o deixam agir assim, o designer garante resultados.
Então porque é que não se fala mais de design?

A Língua do design

Publicado no Jornal "A Capital" a 15 Maio 2005 e 22 de Maio 2005

Será um erro pensar que um designer de comunicação deve ter um conhecimento adequado da língua em que trabalha?

Outro dia, em conversa com uma designer que trabalhou em Macau, perguntei-lhe como era possível exercer a profissão numa língua tão absolutamente estranha como o chinês! É que, para além da dificuldade óbvia na interpretação dos conteúdos, o próprio desenho dos alfabetos representa um mundo novo.
Entre nós, qualquer um - mesmo que não distinga um Garamond de um Times – sempre vai podendo opinar sobre as suas preferências por uma fonte com ou sem serifa (vulgo patilhas), a negro ou fino, em caixa alta ou baixa (as comuns maiúsculas e minúsculas). Mas reconhecer subtilezas no desenho de um ideograma é outro assunto…

Nos alfabetos latinos, que dominamos e reconhecemos, um designer sabe identificar o ponto além do qual uma letra deixa de ser reconhecida; percebe que um tipo seja mais adequado à sinalização do que outro, entre outras coisas por ser mais perceptível à distância e ter uma boa diferenciação entre caracteres (fundamental quando a mensagem deve ser lida em menos de dez segundos); consegue escolher determinada fonte como sendo mais adequada do que outra para retratar uma empresa no seu logotipo.
Numa língua desconhecida, as opções sobre o mundo de hipóteses que nos oferecem as formas ficam vedadas.

E no que diz respeito ao sentido, como será trabalhar às escuras?
Como hierarquizar graficamente a informação, eliminar excessos, enfatizar mensagens ou sugerir alternativas de linguagem?

Imaginemos que um cliente, dono de uma funerária, pretende publicar um anúncio.
Entrega ao designer o nome, “Descanso Eterno”, por exemplo; a data de fundação da empresa; morada e demais contactos, entre quatro números de telefone, fax, telemóveis de serviço diurno e nocturno, email e site; uma frase publicitária do tipo “Não descansamos enquanto não estiver no Descanso Eterno” ; e outras menos publicitárias, mas informativas e igualmente importantes como “fazemos trasladações para e do estrangeiro”, “estamos contactáveis 24horas por dia”, “dispomos de vários modelos de caixões”. Naturalmente, incluindo a fotografia do moderno carro funerário.
E quer este senhor vender todos os serviços da sua agência ao mesmo tempo e por igual, num pequeno rectângulo de 6,5x25cm a publicar na edição de Domingo!
Se trabalhar conteúdos destes de forma convincente e com um resultado digno é difícil (e eu sei que assim é, porque já tive que o fazer), numa língua estranha deve ser uma missão impossível.

O mais estranho é constatar que há designers (ou outros que fazem o seu trabalho) que encaram a sua língua como se ela fosse doutros. Não lhe ligam meia.
Desconhecem a existência de dicionários, gramáticas ou prontuários, e usam palavras a granel, sem escolherem a mais adequada ou sugestiva.

Recebi há tempos uma carta de candidatura de um recém-licenciado a um lugar de designer no meu atelier. Depois da apresentação, o jovem avançava “Para que a realidade de uma formação na área do design de moda possa comprometer quaisquer conclusões, adianto a polivalência (e interesse) para um todo desempenho no design” Como???
E continua “Confirmando essa informação realço a experiência de dois anos no departamento de design, numa empresa sediada no (…), onde para além da criação de moda ainda se desenvolviam projectos conduzidos a uma linguagem e sensibilidades estéticas, na importância da imagem e apresentação gráfica”.
A escolha e ordem de apresentação das palavras, a pontuação e falta dela pertencem ao autor da carta. Omiti propositadamente a localização.
Pergunto: que garantias daria este candidato sobre a sua capacidade de dominar o enunciado de um problema, de escrever uma proposta de trabalho ou redigir uma memória descritiva? Que retrato faz da sua capacidade de raciocínio encadeado e lógico? E, principalmente, de o ser capaz de transmitir a terceiros? Pode ser dono da maior sensibilidade, de uma intuição espantosa, ou mesmo possuidor de grande competência técnica, mas como é que se faz entender?

Outros profissionais há (hesito em escrever a palavra profissional) que se limitam a colocar as palavras dentro da mancha de texto que determinaram, como se encaminhassem as ovelhas para o redil. O que interessa é que caibam lá todas!
Sem sequer as lerem, confirmando se a mensagem faz sentido. Como acontece nas instruções de segurança da Chaleira eléctrica Express HD-3358, que guardo preciosamente: “Quando removendo a tomada da cova da parede, nunca puxe na corda de poder. Nenhuma responsabilidade concordou para dano que é o resultado de uso impróprio ou non complacência com a instrução” .
Melhor só o “Domine frate magnificentissimo. Jesus venturus est and les hommes must do penitenzia. No?” de Salvatore, em O Nome da Rosa.

Naturalmente, quem é insensível ao conteúdo, quase sempre ignora ou despreza a beleza e importância que reside nos detalhes tipográficos.
São pequenos cuidados que existem para facilitar a vida a quem lê e melhorar a qualidade do que se vê. Cuidados que se tornam invisíveis quando estão presentes, mas gritam à vista na sua ausência. Parece contraditório? Não é.
Faça um pequeno exercício de atenção na leitura do jornal. Comece por observar se há linhas penduradas do final de um parágrafo no cimo de uma coluna. A verdade é que não se devem partir frases como quem parte um prato, que quebra onde bater.
Depois observe a forma como são dados títulos ou destaques. Usam a artilharia toda para chamar a atenção – bold, itálico, sublinhado, maiúsculas e a cores sobre uma caixa de cor – ou apenas a dose certa de cambiante relativamente ao resto do texto? São diferenças muito notórias quando comparamos o chamado tablóide com o dito jornal de referência.
Para concluir, repare como a paginação em colunas requer alguma atenção na forma de partir palavras (que não devem semear uma carreira de hífens coluna abaixo, nem separar erraticamente as letras das sílabas), ou de tratar dos espaços entre elas (evitando os abertos e fechados na renda do texto).
Tudo isto são detalhes tipográficos. Pormenores. Pequenos nadas que dizem tudo sobre o cuidado posto no trabalho feito para si!

O design fala com várias linguagens: a das palavras, a das imagens que cria ou interpreta, a das cores, a das memórias. E depois conjuga-as, procurando metáforas, suscitando emoções, criando sentidos. Numa língua que lhe é própria.
Mas que, entre nós, também é o português.

Pare, pense e mude

Publicado no Jornal "A Capital" a 6 Março 2005

(…) as ditaduras da imagem, dos estímulos sensoriais imediatos e do consumismo estão a criar uma sociedade portuguesa com capacidades cada vez mais reduzidas - à semelhança, aliás, do que acontece nas suas congéneres do mundo dito ocidental (…)

in A Capital, “O que é Portugal?”, José Pacheco Pereira e Eduardo Lourenço.

PARE. Nunca tive vídeogravador e consegui até agora resistir aos multicanais da televisão por cabo ou satélite. Mas este Natal o cenário mudou: entrou cá em casa um leitor de DVD. Menos perigoso que a TV, porque só passa o que escolhemos é, ainda assim, dominador.
A imagem em movimento é uma tentação! E, de alguma forma, perigosa.

Ao que parece, o excesso de estímulos sensoriais conduz a uma crescente dificuldade de concentração, transformando-nos em seres passivos e particularmente vulneráveis ao consumo. É como se invadissem os espaços vazios da nossa consciência, eliminando a possibilidade de aparecerem novas ideias ou de armazenarmos de forma ordenada as memórias.

Confesso ter alguma inveja daqueles raros seres que não tendo televisão em casa
são capazes de se sentar duas, três horas em frente a um livro, deixando-se embrenhar pelo enredo, sem se sentirem tentados pelo frenético zapping, ou pela necessidade de ruído, visual ou do outro. Rodeia-os um ambiente de tranquilidade e parecem ser capazes de produzir mais ideias, absorver mais conhecimentos e apreciar coisas que já escapam aos demais.

O mundo mudou.
Os serões à conversa, as tardes de férias com faz-de-conta intermináveis, um fim de semana sem playstation, correspondem a cenários de miragem para a geração que se seguiu à minha. Não lhes causam qualquer entusiasmo; provavelmente ilustram mesmo o que têm por tédio. São coisas que dependem da iniciativa e sobretudo leeeentas.
E nós vivemos numa sociedade que encolheu o tempo, à força de choques tecnológicos.
Tudo se deve passar depressa, tudo se exige com pressa. Muito depressa mesmo.

Será que temos que aceitar este cenário; será tudo isto incontornável, irremediável e inultrapassável?
Quando penso num programa de identidade corporativa, numa exposição sobre o centenário de uma empresa, num manual escolar ou ainda num instrumento cirúrgico pergunto “como se podem desenhar sem investigação, reflexão, distanciamento, amadurecimento? Como é que se podem criar depressa?”
É que não podem…

PENSE. Depois há mais.
Nem tudo é “necessário”, nem tudo se pode encaixar na categoria de “essencial”.
Há carradas de imprescindíveis que atafulham as lojas e os nossos quotidianos.
Uma simples arrumação de casa faz-nos descobrir um mar de inutilidades e a perspectiva de termos que nos desfazer delas é uma tarefa quase impossível.

Proponho-lhe um exercício de despojamento: seleccione 15 objectos “essenciais” a uma vida nova. Verá que na sua escolha hesitará entre o peso da memória e a modernidade, fará a reflexão sobre o útil e o supérfluo, medirá afectos, ponderará necessidades…
“Algures em África” é um filme (sim, há em DVD!) sobre uma família judia que na Segunda Guerra Mundial segue para África para fugir a um destino que parecia inevitável. O marido, que viajou primeiro, recomendou à mulher que trouxesse apenas coisas imprescindíveis: “um frigorífico, material de primeiros socorros, redes de mosquiteiro”. Apesar de não haver qualquer tipo de vida social, ela não resistiu a trazer também um belo e caríssimo vestido de noite (fundamental para ela, do ponto de vista emocional, porque representava a memória de um mundo perdido e a esperança num mundo a recuperar).

O essencial não é igual para todos, nem em todos os momentos. Há sempre um contexto condicionante, mas devem existir critérios de selecção.
Ora o design debate-se diariamente com este tipo de questões: o que é que é essencial num projecto? Qual é o verdadeiro problema? De que forma se pode intervir para produzir “apenas” a resposta? E que ela seja a mais eficaz?
É preciso reflectir e não deixar tudo nas mãos das evidências ou de um qualquer manual de instruções…


MUDE. A necessidade de uma mudança de atitude face ao consumo passa por um exercício de vontade e pela responsabilização dos diferentes actores da produção: encomendadador, consumidor e designer.
Levantemos então apenas a ponta do véu…

Quando alguém encomenda um trabalho de design é bom que pense que vai à procura de respostas e não de alguém que passe a limpo uma ideia. O resultado é tanto melhor quanto maior for o clima de confiança, liberdade e co-responsabilização.

Quando alguém reduz o consumo ao essencial, quando opta pelo não desperdício, ou pelo que é feito com consideração pelo resto do Mundo (na utilização racional de recursos, na utilização responsável da mão de obra), essa sua escolha é, certamente, o elemento que faz a diferença. O gesto que materializa a ideia de responsabilização.

E quanto ao designer? O que se lhe exige?
Que seja fiel a uma prática profissional que recusa abordagens superficiais ou imediatistas. Que pare, pense e seja factor de mudança!

Aqui há design!

Pubicado no Jornal "A Capital" a 6 de Fevereiro 2005

Ao entrar em Lisboa pela auto-estrada do Norte não pude deixar de reparar na frase de um outdoor “Três designs à sua escolha” que oferece – a quem quer comprar casa –
o que julgo serem três opções de planta: provavelmente cozinha logo à entrada ou à direita da casa de jantar, quarto com closet ou amplo e sala em L ou com portas a meio…

Esta forma de usar a palavra design é um clássico em Portugal – “experimente este carro com design espectacular”, “veja a nossa colecção de sapatos de design moderno” ou “arranje aqui o seu cabelo com design e arte” – que tem a particularidade de reduzir o seu significado a modelo, aspecto ou aparência.
Em boa verdade não existe propriamente um erro nesta formulação. Ao distinguirem os objectos “com design” dos demais, as pessoas introduzem na sua leitura uma diferença, alguma mais-valia e reconhecem um projecto e uma intenção.
De qualquer modo, esta perspectiva não deixa de ser redutora.

O facto é que a faceta mais divulgada do design é a materialização em objectos, rodeados de publicidade e marcados com etiquetas, que correspondem, não raro, à imagem de coisa cara, sofisticada, boa para oferta. São marcas, edições exclusivas, modernices…
Acontece que, nem o design é apenas um exercício de sofisticação, nem deve andar arredado das preocupações do dia-a-dia. Na realidade, está ou deveria estar presente nas coisas práticas, facilmente utilizáveis, pouco dispendiosas, funcionais, carregadas de sentido…O design na essência é democrático e transversal à sociedade.

Porque é que a chave do seu carro há-de ter design e o descascador de batatas não?
Não sente a falta de sinalização em certos edifícios públicos?
Será normal, em caso de incêndio, perder-se num mapa para descobrir a saída?
Estas questões lembram casos em que a intervenção do design se demonstra necessária, mas não existe.

Mas outros há em que ela existe e não é notada.
Já alguma vez pensou que, havendo letras com patilha e outras sem, umas estreitas, outras largas, e tantas de desenho tão diferente, o designer que criou a lista telefónica teve que pesar as alternativas antes de optar?
Sabia que a administração pública inglesa determinou, em tempo de guerra, que o design das cartas se faria alinhando todos os textos à esquerda, permitindo obter uma economia de cerca de 15% nos custos de dactilografia, correspondente ao tempo despendido a acertar as linhas do endereço e datas.

São exemplos do que se poderia chamar de design invisível.
Quando é bem feito não se nota. Sente-se apenas a sua falta.
Não acredita? Então repare: é ou não importante a clareza visual e hierarquia de informação nos impressos dos impostos? E alguma vez lhe passaria pela cabeça pedir: “Passe-me um desses impressos com design, por favor!”?
Preparar um documento desse tipo exige um aturado trabalho de investigação – é preciso conhecer perfeitamente as necessidades de informação a constar (reduzindo-a ao mínimo), entender as consequências do preenchimento de cada campo para poder determinar a sua hierarquização e divisão visual – sempre tendo em vista responder à facilidade no preenchimento e considerando quem vai, e como se vai depois, lidar com a informação recolhida.

Outra vertente do design invisível é aquela em que o designer pode ter como função analisar uma determinada situação, identificar os problemas existentes e criar um conjunto de recomendações ou um sistema de actuação, sem criar um objecto propriamente dito.
Nestes casos, mais do que um resultado, é uma metodologia que está em causa.
Metodologia essa que pretende introduzir alguma ordem e intenção na criação de objectos ou na comunicação de ideias.

Li há tempos sobre o caso de um designer italiano que recebeu o convite para trabalhar com uma pequena Comuna que registava problemas sérios de comunicação com os munícipes. Deles não surgiam comentários nem sugestões e a participação na vida comunitária era praticamente nula.
Começou por se inteirar das responsabilidades da Comuna, actividades levadas a cabo, problemas principais e condicionantes materiais existentes.
Uma vez que lutavam com dificuldades financeiras, mas dispunham de um parque gráfico próprio, embora rudimentar, decidiu desde logo tirar partido desses meios.
Identificou as prioridades e passou à prática. Criou uma identidade visual e produziu um linha gráfica simples, facilmente identificável e imediatamente reconhecível nos primeiros posters editados, colocados no comércio local. Tinham informação dos programas e horários de actividades que decorriam. Editou um boletim regular e um conjunto de postais de resposta paga para reclamações e sugestões.
Gradualmente, a população começou a mobilizar-se, a reagir e a participar. Ao déficit notório de comunicação, sucedeu-se uma política de proximidade.
Não se tratou apenas da criação de objectos, mas da avaliação correcta de uma situação e do estabelecimento de um programa de intervenção.
Um trabalho harmonizador, transversal e nem sempre visível.

Portugal conhece o design há relativamente pouco tempo.
Talvez porque ainda está longe de entrar no domínio comum, e não porque pediu emprestada uma palavra estrangeira, o “design” aparece-nos sistematicamente com aspas.
O que é pena.
Numa altura em que as mentes se agitam à procura de soluções para a deficiente economia portuguesa, uma aposta no design invisível podia ser o factor decisivo de competitividade.
Mais do que criar objectos especiais, caros, únicos, modernos, e muitas vezes inúteis, era importante produzir conteúdos sérios, discutir necessidades e prioridades, criar sentido na sociedade.

segunda-feira, 2 de abril de 2007

Se todos podem fazer o que nós fazemos...

...o que é nós designers podemos fazer? Melhor!

É verdade que, para esta premissa funcionar, o designer deve lutar por melhorar a sua prestação, mas o consumidor, por seu lado, também deve ter cada vez mais capacidade de apreciar.

A actividade de design está profundamente ligada à definição de estratégias e à resolução de problemas. No caso da comunicação, lida com situações de concorrência tão fortes no universo visual das pessoas, que ser eficaz é tarefa difícil e não está ao alcance de qualquer um.
Para um designer, não chega saber dominar software (que por ser
facílimo de adquirir e tão amigável para o utilizador, cria facilmente a ilusão de fornecer soluções ao alcance de qualquer um). Conhecer os assuntos mais profundamente, relacionar informação, dominar a língua portuguesa, documentar decisões, saber sustentar a exposição de um projecto, experimentar exaustivamente soluções, ser capaz de liderar uma equipa multidisciplinar, são requisitos imprescindiveis para um profissional de design.

Quanto ao consumidor/utente como pode um decisor distinguir se uma dada imagem reflecte uma instituição, se foi suficientemente longe na história que pode e deve contar ou se está suficientemente desenvolvida em todos os parâmetros?
Como define uma campanha de comunicação, organiza uma exposição, estrutura um livro ou um site, sem conhecer minimamente a metodologia, as ferramentas ou a linguagem do designer?

Parece-me evidente que é necessária uma cultura de consumidor de design esclarecido, cujo efeito se sentirá transversalmente: a começar pelos compradores de serviços de design da Administração Pública, continuando pelos administradores de empresas privadas e acabando no público consumidor final.

MO

"...e de louco, todos temos um pouco"

Por que é que a Administração Pública insiste em promover concursos públicos de design destinados a qualquer um, ou na melhor das hipóteses a estudantes e recém licenciados em design, em vez de contratar serviços profissionais?

Parece que todos, num dado momento, acabamos por ceder à tentação de opinar sobre uma área profissional que não é a nossa. Receitar medicamentos à vizinha, dar ideias para a casa de um irmão, contestar a decisão do juiz num caso polémico, e (porque não?) submeter uma ideia para um selo...

Opinar, ter sentido crítico, sugerir, são qualidades desejáveis, mas todos entendemos que quanto mais se domina uma matéria, mais evidente se torna a complexidade das soluções aos problemas que lhe são levantados.
Por exemplo, quando alguém receita com displicência um anti-inflamatório a uma pessoa com dores no corpo, será que se lembra que esta pode ser alérgica, que pode sofrer de problemas gástricos e necessitaria assim de um protector do estômago, que pode estar a tomar outros medicamentos que com ele interajam, ou que pode estar apenas a mascarar os sintomas de algo mais grave?

Não é por espírito corporativo que critico as instituições públicas por lançarem concursos de design a torto e a direito e abertos à participação de qualquer um.
Parece-me apenas que, agindo assim, dão um sinal contrário ao do governo que anuncia pretender posicionar Portugal pela competitividade e profissionalismo.

MO

sexta-feira, 30 de março de 2007

experiencia

sou eu...

Passatempo ou Projecto?

Passatempo: ocupação do tempo com o que dá prazer, com vagar e sem exigência de grande esforço; aquilo em que as pessoas se ocupam em tempo de lazer; que serve de entretenimento; de distracção, que ajuda a passar o tempo de forma agradável
Projecto: o que se pretende fazer; empreendimento que alguém se propõe levar a cabo dentro de um determinado esquema e visando objectivos bem definidos; traços ou ideias mais ou menos pormenorizadas de um trabalho que se pretende realizar=plano;
Dicionario da Academia das Ciências

Os CTT lançaram, pela mão do seu departamento de marketing, o Passatempo "aqui há selo".
Nele pretendem obter
do maior número de pessoas possível a sugestão de temas para os selos a emitir pelos CTT
.

Como estratégia de marketing tem a sua eficácia, porque ao permitir o envolvimento das pessoas na decisão, e oferecer-lhes a oportunidade de sugerirem ideias, obtêm uma série de sugestões preciosas a custo zero (mas que sendo dadas de boa vontade não se pode dizer que sejam usurpadas) e uma divulgação alargada do produto, pelo envolvimento dos "amigos do proponente" na votação.

Mas podendo ficar por aí na participação pública, o Gabinete de Marketing decidiu alargar o Passatempo até à fase de Projecto do próprio selo (ponto 3.4 do Regulamento que se pode ler em http://aquihaselo.com/regulation.aspx), sugerindo a apresentação de propostas criativas.
Por qualquer pessoa que sinta ter em si uma ideia ou uma imagem que se possa transformar num selo. Ideias essas que podem vir a ser modificadas total ou parcialmente. E sem garantia de virem a ser executadas.

E aí é que reside o equívoco do Gabinete de Marketing.
É que isso é tudo menos projecto e chamá-lo como tal induz as pessoas em erro.
Um projecto implica uma determinação, um plano e conhecimentos.
Os CTT, que dispõem de um Gabinete de Design, deveriam saber melhor do que ninguém que questões como os métodos de reprodução e suas questões técnicas e restrições, a legibilidade da informação num campo de intervenção tão pequeno, as questões relativas à composição dos elementos e suas hierarquias, a oportunidade de criar uma colecção, etc. não são coisas que se ataquem com displicência.

E daí o perigo das iniciativas isoladas dos Gabinetes de Marketing, que confundem projecto com passatempo!
MO


quarta-feira, 28 de março de 2007

Profissões ou competências

Aprovada a nova Classificação Nacional de Profissões, pergunto a mim mesma, se no quadro actual, fazê-lo ainda faz sentido.
Profissão vem do latim Professio, e significa "actividade remunerada que uma pessoa desempenha e que exige formação e especialização".

Mas, embora ainda não nos estejamos a dirigir para a prática do Homem da Renascença, conhecedor e sábio, interessado e interveniente em diferentes áreas, cada vez mais se exige no âmbito profissional que se seja polivalente e flexível.
Mudar de profissão, por exemplo é visto nos dias de hoje como coisa normal, quase desejável.

Por outo lado, dou conta que a minha profissão - designer - apresenta contornos cada vez menos nítidos na área de intervenção.
Sou frequentemente chamada a exercer uma série de competências que poderiam noutros tempos não estar ligadas à prática habitual da profissão, ou mesmo pertencer a outras.

And yet... posso e devo exercê-las.


Certas formações, apesar de inscritas nessa Classificação Nacional de Profissões, permitem exercer quase tudo - como o antropólogo - ou então na prática não existem como profissões - como o filósofo.

Mas quando se verifica que o processo de classificação de profissões exige a definição ao pormenor dos conteúdos funcionais, tudo isto perde um pouco o sentido e apresenta-se algo anacrónico.

Então em que ficamos? Precisamos de profissionais ou competentes?
MO