quinta-feira, 22 de novembro de 2007

A Língua do design

Publicado no Jornal "A Capital" a 15 Maio 2005 e 22 de Maio 2005

Será um erro pensar que um designer de comunicação deve ter um conhecimento adequado da língua em que trabalha?

Outro dia, em conversa com uma designer que trabalhou em Macau, perguntei-lhe como era possível exercer a profissão numa língua tão absolutamente estranha como o chinês! É que, para além da dificuldade óbvia na interpretação dos conteúdos, o próprio desenho dos alfabetos representa um mundo novo.
Entre nós, qualquer um - mesmo que não distinga um Garamond de um Times – sempre vai podendo opinar sobre as suas preferências por uma fonte com ou sem serifa (vulgo patilhas), a negro ou fino, em caixa alta ou baixa (as comuns maiúsculas e minúsculas). Mas reconhecer subtilezas no desenho de um ideograma é outro assunto…

Nos alfabetos latinos, que dominamos e reconhecemos, um designer sabe identificar o ponto além do qual uma letra deixa de ser reconhecida; percebe que um tipo seja mais adequado à sinalização do que outro, entre outras coisas por ser mais perceptível à distância e ter uma boa diferenciação entre caracteres (fundamental quando a mensagem deve ser lida em menos de dez segundos); consegue escolher determinada fonte como sendo mais adequada do que outra para retratar uma empresa no seu logotipo.
Numa língua desconhecida, as opções sobre o mundo de hipóteses que nos oferecem as formas ficam vedadas.

E no que diz respeito ao sentido, como será trabalhar às escuras?
Como hierarquizar graficamente a informação, eliminar excessos, enfatizar mensagens ou sugerir alternativas de linguagem?

Imaginemos que um cliente, dono de uma funerária, pretende publicar um anúncio.
Entrega ao designer o nome, “Descanso Eterno”, por exemplo; a data de fundação da empresa; morada e demais contactos, entre quatro números de telefone, fax, telemóveis de serviço diurno e nocturno, email e site; uma frase publicitária do tipo “Não descansamos enquanto não estiver no Descanso Eterno” ; e outras menos publicitárias, mas informativas e igualmente importantes como “fazemos trasladações para e do estrangeiro”, “estamos contactáveis 24horas por dia”, “dispomos de vários modelos de caixões”. Naturalmente, incluindo a fotografia do moderno carro funerário.
E quer este senhor vender todos os serviços da sua agência ao mesmo tempo e por igual, num pequeno rectângulo de 6,5x25cm a publicar na edição de Domingo!
Se trabalhar conteúdos destes de forma convincente e com um resultado digno é difícil (e eu sei que assim é, porque já tive que o fazer), numa língua estranha deve ser uma missão impossível.

O mais estranho é constatar que há designers (ou outros que fazem o seu trabalho) que encaram a sua língua como se ela fosse doutros. Não lhe ligam meia.
Desconhecem a existência de dicionários, gramáticas ou prontuários, e usam palavras a granel, sem escolherem a mais adequada ou sugestiva.

Recebi há tempos uma carta de candidatura de um recém-licenciado a um lugar de designer no meu atelier. Depois da apresentação, o jovem avançava “Para que a realidade de uma formação na área do design de moda possa comprometer quaisquer conclusões, adianto a polivalência (e interesse) para um todo desempenho no design” Como???
E continua “Confirmando essa informação realço a experiência de dois anos no departamento de design, numa empresa sediada no (…), onde para além da criação de moda ainda se desenvolviam projectos conduzidos a uma linguagem e sensibilidades estéticas, na importância da imagem e apresentação gráfica”.
A escolha e ordem de apresentação das palavras, a pontuação e falta dela pertencem ao autor da carta. Omiti propositadamente a localização.
Pergunto: que garantias daria este candidato sobre a sua capacidade de dominar o enunciado de um problema, de escrever uma proposta de trabalho ou redigir uma memória descritiva? Que retrato faz da sua capacidade de raciocínio encadeado e lógico? E, principalmente, de o ser capaz de transmitir a terceiros? Pode ser dono da maior sensibilidade, de uma intuição espantosa, ou mesmo possuidor de grande competência técnica, mas como é que se faz entender?

Outros profissionais há (hesito em escrever a palavra profissional) que se limitam a colocar as palavras dentro da mancha de texto que determinaram, como se encaminhassem as ovelhas para o redil. O que interessa é que caibam lá todas!
Sem sequer as lerem, confirmando se a mensagem faz sentido. Como acontece nas instruções de segurança da Chaleira eléctrica Express HD-3358, que guardo preciosamente: “Quando removendo a tomada da cova da parede, nunca puxe na corda de poder. Nenhuma responsabilidade concordou para dano que é o resultado de uso impróprio ou non complacência com a instrução” .
Melhor só o “Domine frate magnificentissimo. Jesus venturus est and les hommes must do penitenzia. No?” de Salvatore, em O Nome da Rosa.

Naturalmente, quem é insensível ao conteúdo, quase sempre ignora ou despreza a beleza e importância que reside nos detalhes tipográficos.
São pequenos cuidados que existem para facilitar a vida a quem lê e melhorar a qualidade do que se vê. Cuidados que se tornam invisíveis quando estão presentes, mas gritam à vista na sua ausência. Parece contraditório? Não é.
Faça um pequeno exercício de atenção na leitura do jornal. Comece por observar se há linhas penduradas do final de um parágrafo no cimo de uma coluna. A verdade é que não se devem partir frases como quem parte um prato, que quebra onde bater.
Depois observe a forma como são dados títulos ou destaques. Usam a artilharia toda para chamar a atenção – bold, itálico, sublinhado, maiúsculas e a cores sobre uma caixa de cor – ou apenas a dose certa de cambiante relativamente ao resto do texto? São diferenças muito notórias quando comparamos o chamado tablóide com o dito jornal de referência.
Para concluir, repare como a paginação em colunas requer alguma atenção na forma de partir palavras (que não devem semear uma carreira de hífens coluna abaixo, nem separar erraticamente as letras das sílabas), ou de tratar dos espaços entre elas (evitando os abertos e fechados na renda do texto).
Tudo isto são detalhes tipográficos. Pormenores. Pequenos nadas que dizem tudo sobre o cuidado posto no trabalho feito para si!

O design fala com várias linguagens: a das palavras, a das imagens que cria ou interpreta, a das cores, a das memórias. E depois conjuga-as, procurando metáforas, suscitando emoções, criando sentidos. Numa língua que lhe é própria.
Mas que, entre nós, também é o português.

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